domingo, 31 de outubro de 2010

Paz - Natália Correia



Irreprimível natureza

exacta medida do sem-fim

não atinjas outras distâncias

que existem dentro de mim.



Que os meus outros rostos não sejam

o instável pretexto da minha essência.

Possam meus rios confluir

para o mar duma só consciência.



Quero que suba à minha fronte

a serenidade desta condição:

harmonia exterior à estátua

que sabe que não tem coração.

Diálogo - Cecília Meireles




Minhas palavras são a metade de um diálogo obscuro

continuando através de séculos impossíveis.

Agora compreendo o sentido e a ressonância

que também trazes de tão longe em tua voz.

Nossas perguntas e resposta se reconhecem

como os olhos dentro dos espelhos. Olhos que choraram.


Conversamos dos dois extremos da noite,

como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa...


E um mar de estrelas se balança entre o meu pensamento e o teu.

Mas um mar sem viagens.

sábado, 30 de outubro de 2010

Divagações suscitadas por Há Luz Demais ...ao som de Carlos Bica e Trio Azul)

Quando a música e as palavras,
o espaço entre o sons dissonantes e/ou harmónicos e os silêncios,
são pura poesia que nos arrasta a alma para
as paisagens que habitam o nosso imaginário pessoal.
 

PAI, A MINHA SOMBRA ÉS TU - Jorge Reis-Sá



Pai, a minha sombra és tu
a cadeira está vazia, um corpo ausente

...não aquece a madeira que lhe dá forma



e não ouço o recado que me quiseste dar

nem a tua voz forte que grita meninos

na hora de acordar

ouço o teu abraço, no corredor em gaia

e os olhos molhados pela inusitada despedida



o sol foge

mas o crepúsculo desenha a sombra que

tenho colada aos pés

ou o espelho, coberto com a tua face



pai, digo-te

a minha sombra és tu



(Jorge Reis-Sá)

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Ritos - Saint Exupéry


"No dia seguinte o principezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade!
Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração...
É preciso ritos."




Saint Exupéry, in "O Principezinho"

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Lá Fora ...




E o dia amanheceu.


- O dia seguinte -

Pela Janela descubro que

a vida continua lá fora.

O sol rompe entre as nuvens,

esbantendo sombras nas

casas defronte.

Os Pássaros chilreiam lá fora,

O Plátanos e as acácias perdem,

uma a uma as suas roupagens.

Tudo isto avisto da minha janela.

Cumpro religiosamente a agenda.

Cerro os olhos cansados por um segundo

E oiço os sons da vida lá fora.

Olho de novo pela janela,

e sigo o bailar das folhas ao vento.

Está um frio cortante que me inunda a alma.

Tenho as mãos geladas.

E a alma estranha e plácidamente calma.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Quando eu morrer - Maria Rosário Pedreira

Ilha do Faial - Foto de Menina do Alto da Serra - Agosto 2008


Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa
que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudades de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me
a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Epigrama No. 8 - Cecília Meirelles



...Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.

Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.

Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,

fiquei sem poder chorar, quando caí.

domingo, 24 de outubro de 2010

Animal Ferido


Magoada, traida e insultada
Por ousares pensar de mim
aquilo que eu nunca fui ou serei.
Porque cobardemente o escreveste e
as palavras escritas eternizam-se no tempo
e criam feridas mais profundas
que aquelas que apenas são ditas
num momento de raiva e sem pensar,

E mais ainda porque me devias conhecer
ao ponto de nem sequer equacionar que
alguma eu fosse capaz de assumir atitudes
cobardes ou umal formadas

Ferida como um animal numa armadilha,
encurralada, numa sére de inverdades,
ataquei por todos os lados.
Disse as verdades que tinha há muito
entaladas na garganta
e com uma crueldade de que me arrependi
logo mal sairam para o mundo e, acredita me
machucam mais a mim que a ti.

Não deitei tudo a perder porque
já nada havia a perder.
Há muito que as tuas atitudes
me foram afastando, dia -a -dia
de ti.

Gostava de acreditar que as minhas palavras de
hoje e de outros dias fossem capazes de te levar
a erguer os braços e lutar por ti (já nem falo de nós).
Mas sei que ums vez mais as deitaste ao vento
E nada farás para sair desse túmulo
em que te confinaste já em vida.

Lamento tanto. Verti as últimas lágrimas. ´
E agora sigo em frente. E já nem consigo chamar-te meu amor.

sábado, 23 de outubro de 2010

As Malas já estão feitas


Acordei assim.
Com uma saudade que já nem é
saudade de Ti.


Acordei assim,
Um vazio imenso,
ou uma leveza etérea,
Lágrimas que não correm
Aceitação da tua partida
E a certeza estranha
Que desta vez, não te verei regressar


Acordei assim, sem querer chorar por ti,
Sem querer lembrar que existes
E que algures a tua alma ainda clama
por mim.

Acordei assim, vazia de sentimentos,
uma imensa vontade de me lançar ao mundo,
colher novos sonhos,
esquecer este amor tão grave e triste,
esta paixão que põe doente,
sair desta escuridão
e viver o sol que algures chama por mim.

(e no entanto...ainda gosto de ti.Tanto).

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Vida com controlo remoto

ON
◄◄ rewind
► play

▌▌pause

►► fast forward

OFF

A vida devia vir com um controlo remoto.
ON ou OFF, Play ou Pause, conforme as dores ou alegrias
da vida nos peçam para parar, ganhar forças, continuar.

E que escolhendo OFF ou Pause, ao deixar tudo suspenso,
O mundo inteiro parasse simultaneamente e não corressemos o risco
de um dia, ao clicar ON ou Play, descobrir que a vida nos
passou ao lado e que é tarde demais para recuperar o tempo perdido.

Ao clicar  ◄◄ rewind  os momentos
de felicidade, mesmo que perdidos, perdurariam continuamente sem serem fugazes lembranças.
E ao simples ritmo de um clique em ►► fast forward as perdas, os choros, as angústias,
desilusões durassem apenas o preciso instante em que as vivemos,
permitindo que em breves segundos ON ou Play nos conduzisse para o momento seguinte da vida,
aquele que seria o primeiro do resto das nossas vidas.
...........
Uma condição se imporia, para salvaguarda da nossa liberdade e tranquilidade: apenas um controle remoto por pessoa, com estrita possibilidade de utilização pelo próprio e absoluta exclusão de manipulação por terceiros.

12-09-2010

Ne me quitte pas - Jacques Brel



Ne me quitte pas, il faut oublier


Tout peut s’oublier qui s’enfuit déjà

Oublier le temps des malentendus

Et le temps perdu à savoir comment

Oublier ces heures qui tuaient parfois

A coups de pourquoi le coeur du bonheur

Ne me quitte pas, ne me quitte pas,

ne me quitte pas



Moi, je t’offrirai des perles de pluie

Venues de pays où il ne pleut pas

Je creuserai la terre, jusqu’ après ma mort

Pour couvrir ton corps d’or et de lumière

Je ferai un domaine où l’amour sera roi

Où l’amour sera loi, où tu seras reine

Ne me quitte pas, ne me quitte pas,

ne me quitte pas



Ne me quitte pas, je t’inventerai

Des mots insensés que tu comprendras

Je te parlerai de ces amants là

Qui ont vu deux fois leurs coeurs s’embraser

Je te raconterai l’histoire de ce roi

Mort de n’avoir pas pu te rencontrer

Ne me quitte pas, ne me quitte pas,

ne me quitte pas



On a vu souvent rejaillir le feuDe l’ancien volcan

qu’on croyait trop vieux

Il est parait-il des terres brûlées

Donnant plus de blé qu’un meilleur avril

Et quand vient le soir pour qu’un ciel flamboie

Le rouge et le noir ne s’épousent-ils pas?

Ne me quitte pas, ne me quitte pas,

ne me quitte pas



Ne me quitte pas je ne vais plus pleurer

Je ne vais plus parler, je me cacherai là

A te regarder danser et sourire

Et à t’écouter chanter et puis rireLaisse-moi

devenir l’ombre de ton ombre

L’ombre de ta main, l’ombre de ton chien

Ne me quitte pas, ne me quitte pas,

ne me quitte pas

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Desencontro - Jorge Sena




Só quem procura sabe como há dias

de imensa paz deserta; pelas ruas

a luz perpassa dividida em duas:

a luz que pousa nas paredes frias,

outra que oscila desenhando estrias

nos corpos ascendentes como luas

suspensas, vagas, deslizantes, nuas,

alheias, recortadas e sombrias.



E nada coexiste. Nenhum gesto

a um gesto corresponde; olhar nenhum

perfura a placidez, como de incesto,


de procurar em vão; em vão desponta

a solidão sem fim, sem nome algum -

- que mesmo o que se encontra não se encontra.

Poema do Gato - António Gedeão


Quem há-de abrir a porta ao gato

...quando eu morrer?


Sempre que pode

foge prá rua

cheira o passeio

e volta para trás,

mas ao defrontar-se com a porta fechada

(pobre do gato!)

mia com raiva

desesperada.



Deixo-o sofrer

que o sofrimento tem sua paga,

e ele bem sabe.



Quando abro a porta corre para mim

como acorre a mulher aos braços do amante.

Pego-lhe ao colo e acaricio-o

num gesto lento,

vagarosamente,

do alto da cabeça até ao fim da cauda.

Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,

olhos semicerrados, em êxtase,

ronronando.



Repito a festa,

vagarosamente,

do alto da cabeça até ao fim da cauda.

Ele aperta as maxilas,

cerra os olhos,

abre as narinas,

e rosna,

rosna, deliquescente,

abraça-me

e adormece.



Eu não tenho gato, mas se o tivesse

quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O teu nome - Eugénio de Andrade

Tua mãe dava-te nomes pequenos, como se a maré os trouxesse com os caramujos. Ela queria chamar-te afluente-de-junho, púrpura-onde-a-noite-se-lava, branca-vertente-do-trigo, tudo isto apenas numa sílaba. Só ela sabia como se arranjava para o conseguir, meu baiozinho-de-prata-para-pôr-ao-peito.

 Assim te queria. Eu, às vezes.




Eugénio de Andrade, in MEMORIA DE OUTRO RIO, 1976

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Eu pronuncio o teu nome - Garcia Lorca


Eu pronuncio teu nome

nas noites escuras,

quando vêm os astros

beber na lua

e dormem nas ramagens

das frondes ocultas.

E eu me sinto oco

de paixão e de música.

Louco relógio que canta

mortas horas antigas.



Eu pronuncio teu nome,

nesta noite escura,

e teu nome me soa

mais distante que nunca.

Mais distante que todas as estrelas

e mais dolente que a mansa chuva.



Amar-te-ei como então

alguma vez? Que culpa

tem meu coração?

Se a névoa se esfuma,

que outra paixão me espera?

Será tranqüila e pura?

Se meus dedos pudessem

desfolhar a lua!!

domingo, 10 de outubro de 2010

azorean torpor




Um céu de algodão sujo tolda o arquipélago das nove ilhas; o mormaço apaga os contornos do mar e da terra, e, amolecendo os pastos à custa da pele do proprietário e do pastor, dilui e arrasta as vontades, dá a homens e a coisas uma doença quase de alma, a que os ingleses, médicos do bem-estar, puseram uma etiqueta como quem descobre uma planta nova neste mundo seco e velho: — azorean torpor.


Vitorino Nemésio, Mau tempo no canal,

Lisboa, Bertrand, 1944 (1ª ed.)

sábado, 9 de outubro de 2010

Les Mots - Claude Nougaro



Les mots divins

les mots en vain

les mots de plus

...les motus

les mots pour rire

les mots d'amour

les mots dits, pour te maudire

les mots bruissants, comme des rameaux

les mots ciselés, comme des émaux



la faim des mots

la soif des mots

qui disent quelque chose

les mots chéris qui sur mes lèvres

n'ont pas trouvé

leur place

les mots muets

les mots buées

comme un baiser sur la glace

les mots bouclés

clés de l'espace

les mots oiseaux qui laissent des traces



les mots qui tuent

les mots qui muent

les mots tissant l'émotion

les mots palis

les mots salis

les mots de prédilection

les mots qui te caressent

comme des mains



les mots divin

les mots devin

les premiers mots

la fin

des mots

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Nada mais resta que um Outubro...


De amor nada mais resta que um Outubro

e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes.
Estou morta na quermesse
dos teus beijos.

Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

...Quando as folhas de melancolia... Herberto Helder




Não sei como dizer-te que a minha voz te procura

e a atenção começa a florir, quando sucede a noite

esplêndida e vasta.



Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos

se enchem de um brilho precioso

e estremeces como um pensamento chegado. Quando,

iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado

pelo pressentir de um tempo distante,

e na terra crescida os homens entoam a vindima

- eu não sei como dizer-te que cem ideias,

dentro de mim, te procuram. Quando as folhas da melancolia

arrefecem com astros ao lado do espaço

e o coração é uma semente inventada

em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,

tu arrebatas os caminhos da minha solidão

como se toda a casa ardesse pousada na noite.


- E então não sei o que dizer

junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.

Quando as crianças acordam nas luas espantadas

que às vezes se despenham no meio do tempo

- não sei como dizer-te que a pureza,

dentro de mim, te procura.


Durante a primavera inteira aprendo

os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto

correr do espaço -

e penso que vou dizer algo cheio de razão,

mas quando a sombra cai da curva sôfrega

dos meus lábios, sinto que me faltam

um girassol, uma pedra, uma ave - qualquer coisa extraordinária.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Sonhei Comigo - Eugénia Tabosa


Sonhei comigo

...esta noite

Vi-me ao comprido

Deitada

Tinha estrelas

nos cabelos

em meus olhos

madrugadas

Sonhei comigo

esta noite

como queria

ser sonhada

Senti o calor da mão

percorrendo uma guitarra

De longe vinha um gemido

uma voz desabalada

Havia um campo

de trigo

um sol forte

me abrasava.

E acordei

meio sonhando

procurando

me encontrar

Quando me via

ao espelho

era teu

o meu olhar.