quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros_Mª do Rosário Pedreira


O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros.
As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras
são pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos
outros pelo tempo destas entrelinhas - longe de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar

a primeira página: em fevereiro, eles ainda faziam amor
à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia
laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar
ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao espelho.
Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro,
antes de se despedirem. As vezes, repartiam sofregamente
a infância, postais antigos, o silêncio - nada

aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha,
à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as histórias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém.


in "A Casa e o Cheiro dos Livros"

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Gosto-te __Joaquim Pessoa

Gosto-te. E desta certeza se abre a manhã como uma

imensa rosa de desejo indestrutível. O futuro é o pró-
ximo minuto, o que está para além da infatigável religi-
ão dos meus versos, em cuja luz me acendo, feliz e nu.

O meu sorriso conhece a bondade dos animais, o po-
der frágil das corolas, e repete o nome feminino dos ar-
canjos de peitos redondos, perfumados pelas giestas
das veredas do céu.

Gosto-te. Amarrado pelos meus braços de beduíno do
sol, pobre senhor dos desertos, profeta da distância
que há dentro das palavras, onde se alongam sombras
e o sofrimento se estende até à orla da mais inquieta
serenidade.

Gosto-te. E tenho sido feliz por nunca ter seguido os
trilhos que me quiseram destinar. Aqui e ali me pergun-
to, despudoradamente. E sei que não sei mentir. É por
isso, que recolho na face a luz imprescindível ao orgu-
lho dos peixes e dos frutos.

Gosto-te. "Na-na-na, na-ô... Na-na-na, na-ô... na nô",
canta o espírito do caminho, canta para mim e canta pa-
ra ti, eleva o coração das árvores grandes, coração de
coragem e de sangue fresco e verde, apaixonado e do-
ce, de tanto contemplar o perfil das tardes.

Gosto-te. Mas "longe" é agora uma palavra húmida, grá-
vida de água, onde os sinos da erva tocam para convocar
o imenso amor das sílabas. E, ao procurar-te, tremo ape-
nas de ternura, para que nem mesmo a inteligente brisa
da tarde possa dar pela minha presença.
Mais discreto que isto é impossível.

sábado, 7 de maio de 2011

NÃO VOLTEI A ESSE CORPO___Mª do Rosário Pedreira


Não voltei a esse corpo; e não sei

se aqueles que o vestiam antes e depois

de mim souberam nele o verdadeiro calor

...e lhe conheceram os perigos, os labirintos,

as pequenas feridas escondidas. Não voltarei

provavelmente a sentir a respiração

palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas

rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito

também, às vezes.



Uma noite outro corpo virá lembrar essa maresia,

o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.

E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me

recolheu,

porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.



Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto

trocarei os lençóis da cama por outros, mais limpos.

sábado, 16 de abril de 2011

Mendigo de Amor __ José Dimas

Já fui mendigo de Amor,

Em tempos que já lá vão,

Eu já lhe conheço a dor,

Não vou mendigar mais não,



Já não peço ao meu Amor,

Mimos carinhos e beijos,

Conhecemo-nos de cor,

Ela sabe os meus desejos,



E Amar, presentemente,

Nesta ânsia, todos os dias,

Do Amar perdidamente,



Com todas as euforias,

É um sentimento presente,

Um despertar… de alegrias…


(Publicado com a autorização do autor. A transcrição deve mencionar o autor (José Dimas) e a fonte de publicação)

domingo, 27 de fevereiro de 2011

A envolvência do teu Abraço _ Fátima Ramos

A meu PAI

Nesta distância que o tempo e a morte impuseram,

nesta tormenta em que navego,

nesta solidão em que as saudades

da tua voz, do teu sorriso trocista mas cheio de carinho,

das tuas palavras cheias do mais refinado humor

onde se escondia um profundo e imenso amor,

Sinto a envolvência do teu Abraço meu Pai,

Como se estivesses aqui comigo,

sussurrando-me o caminho a seguir,

os passos a tomar

e dando-me a coragem e força necessária

para aguentar firme os ventos e as chuvas,

o frio deste inverno que me gela as mãos,

o coração e a alma,

Lembrando-me que há sempre um novo sonho

depois daquele que se quebra e nos impele a Viver,

mesmo quando só nos apetece esconder do mundo

no conforto da escuridão.

Que há sempre uma alegre Primavera

após o mais frio Inverno

e que mesmo enquanto este dura,

o raio de sol que espreita por entre as nuvens

e derrete a mais sólida neve que caiu no chão...

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Asa de Borboleta _ Cecília Meireles

No mistério do sem-fim

equilibra-se um planeta.

E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,

e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Antes de um lugar há o seu nome_Maria Rosário Pedreira

Antes de um lugar há o seu nome. E ainda

a viagem até ele, que é um outro lugar

mais descontínuo e inominável.


Lembro-me

do quadriculado verde das colinas,

do sol entretido pelos telhados ao longe,

dos rebanhos empurrados nos carreiros,

de um cão pequeno que se atreveu à estrada.


Íamos ou vínhamos?

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A Mãe _ João Negreiros


A mãe

Quando crescer quero ser a mãe

só p’ra ser a minha

e me dar carinho sem ter que mo pedir

quero morrer p’ra ser a mãe de alguém

mas com as mãos a voz e o cheiro da minha



mãe

és a minha mãe

antes não fosses

antes fosses a mãe de todos

p’ra que todos fossem felizes

se fosses a mãe do mundo o mundo era melhor

e eu não existia

mas acredita que não me importava

porque haveria de viver no som dos teus beijos

no fresco da tua mão contra a testa febril

no olhar que encontra o brinquedo

na luz que me apaga o medo



haveria de viver no teu coração como um filho que não nasceu

e que morre todos os dias para provar que sempre te amou



in "o cheiro da sombra das flores"

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A Defesa do Poeta _ Natália Correia

Senhores jurados sou um poeta

um multipétalo uivo um defeito

e ando com uma camisa de vento

ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis

de armazenado espanto e por fim

com a paciência dos versos

espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos

(curtido couro de cicatrizes)

uma avaria cantante

na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade

o vosso enfarte serei

não há cidade sem o parque

do sono que vos roubei

Senhores professores que puseste

a prémio minha rara edição

de raptar-me em crianças que salvo

do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho

de em pó volverdes sois os reis

sou um poeta jogo-me aos dados

ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes

puro exercício de ninguém

minha cobardia é esperar-vos

umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e sete

que medo vos pôs na ordem ?

que pavor fechou o leque

da vossa diferença enquanto homem ?

Senhores juízes que não molhais

a pena na tinta da natureza

não apedrejeis meu pássaro

sem que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta

de um verso onde o possa escrever

ó subalimentados do sonho !

a poesia é para comer.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Hoje sorriem-me a terra e os céus _Gustavo Adolfo Bécquer



Hoje sorriem-me a terra e os céus;

sinto no fundo da minha alma o sol;

eu hoje vi-a..., vi-a e ela olhou-me...

Creio hoje em Deus!

Ama-me...Incondicionalmente _ Dr.Jeckyl.


"Ama-me quando eu menos o merecer,
porque será nessa altura que mais necessitarei"

- Dr.Jeckyl.











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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O cair das Máscaras__Menina do Alto da Serra


Caiu o pano, cairam as máscaras...
repetes algures o enredo desta peça
que escreveste um dia, encenaste, representas e
que tens em permanente exibição,
mantendo o mesmo elenco bolorento,
com excepção da primeira figura
feminina.

Porque precisas dela para sobreviver,
dos afectos, das atenções
que alimentas sem intenção
de guardar e velar,
Como bom Corsário
que és não sabes construír
apenas pilhar e roubar.

Vais, assim, assumindo em sucessivos e novos palcos,
o papel que se colou
ao teu rosto e alma,
entrando pela calada
da noite nos portos de abrigo
que encontras nesses mares
em que navegas,
conquistando com o teu eterno queixume e
lamento, música e falsas doçuras,
os corações das recatadas donzelas
que te devotam palavras de ânimo e
puro afecto e, envoltas numa cega ilusão,
cheias de pena pelas tuas (falsas) penas,
juram resgatar-te da escuridão
e conduzir-te à luz que finges querer alcançar...

Tudo levas que te alimente o ego, nada dás em troca além
de choro e crueldade
e partes, não como vieste,
mas deixando bem presente o teu lastro de destruição,
nas casas incendiadas, nas donzelas violentadas,
no choro desenfreado,
nas louças partidas e livros rasgados pelo chão,
fruto da tua acção malvada.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

É Outono - Eugénio de Andrade

É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios,
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálpebras acesas.

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

Já não necessito de TI _Alberto

Já não necessito de ti
Tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
Tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio
De outras galáxias, e o remorso.....
.....um dia pressenti a música estelar das pedras
abandonei-me ao silencio.....
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas
ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo.
Ofício de Amar

domingo, 30 de janeiro de 2011

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Valsa de Um Homem Carente__Jorge Palma



Se alguma vez te parecer
Ouvir coisas sem sentido
Não ligues sou eu a dizer
Que quero ficar contigo
E apenas obedeço
Com as artes que conheço
Ao principio activo que rege desde o começo
E mantêm o mundo vivo.

Se alguma vez me vires fazer
Figuras teatrais
Dignas de um palhaço pobre
Sou eu a dançar a mais nobre
Das danças nupciais
E em minhas plumas cardeais
Em todo o meu esplendor
Sou eu, sou eu nem mais
A suplicar o teu amor.

É a dança mais pungente
Mão atrás e outra à frente
Valsa de um homem carente

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

MANCHA ESCARLATE NOS LÁBIOS_Li Qingzhao

Cansada, deixa o balanço,

...Limpa suas mãos delicadas

Como uma flor frágil coberta de orvalho.

Um leve suor embebe sua roupa.


À vista do estranho, no fundo do jardim,

Com meias de seda, o grampo de ouro escorregando dos cabelos,

Cheia de timidez, ela foge.

Mas na porta entreaberta, volta-se,

Como se quisesse respirar o aroma das ameixas verdes.

domingo, 23 de janeiro de 2011

prin:cesa._Pedro Chagas Freitas


chamo-te princesa, vinho do meu porto – senhora morena que me caiu no goto.

e não sei que passo dar,que fuga querer – não sei sequer como te desejo ter.

sei que te sei e que te quero saber: à lua que se enche de voz, às lágrimas que se erguem na foz.

não sei o que quero – mas sei que não quero: cúmplice por crescer, carinho por vencer.

não sei o que quero – mas sei que me quero:no mundo do teu fundo, na curva da tua estrada – na silhueta da tua chegada.

chamo-te princesa, vinho do meu porto – e é na sombra do teu sorriso que em sorriso me conforto.


(extraído da Página do Facebook do Autor)

A POLÍTICA DO DIA _Natália Correia


Hoje a vida tem o sorriso

dentífrico dos candidatos

e pelas ruas nos aponta

o céu, em múltiplos retratos.



Céu não póstumo ou merecido

em cruel sala de espera

mas entre parêntesis de fogo

festiva véspera de guerra


Teor de montras a vida

com democrático humor

a todos deixa viver

a sua dose de flor.


Publicitária a vida faz

sua campanha eleitoral

prato de vida apetitosa

temperada com humano sal


Televisor férias de verão

tira a vida do seu discurso

e um amor provençal

que nos domestica o urso


Popular a vida é toda

pétalas de apertos de mão.

Que meus versos me vinguem

de cair nesse alçapão!

sábado, 22 de janeiro de 2011

Paz _ Natália Correia


Irreprimível natureza

exacta medida do sem-fim

não atinjas outras distâncias

que existem dentro de mim.



Que os meus outros rostos não sejam

o instável pretexto da minha essência.

Possam meus rios confluir

para o mar duma só consciência.



Quero que suba à minha fronte

a serenidade desta condição:

harmonia exterior à estátua

que sabe que não tem coração.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Fiz um Conto para me Embalar


Fiz com as fadas uma aliança.

A deste conto nunca contar.

Mas como ainda sou criança

Quero a mim própria embalar.



Estavam na praia três donzelas

Como três laranjas num pomar.

Nenhuma sabia para qual delas

Cantava o príncipe do mar.



Rosas fatais, as três donzelas

A mão de espuma as desfolhou.

Nenhum soube para qual delas

O príncipe do mar cantou.

Nuvem Passageira _Hermes de Aquino

Eu sou nuvem passageira,
Que com o vento se vai,
Eu sou como um cristal bonito
Que se quebra quando cai.

Não adianta escrever meu nome n’uma pedra,
Pois essa pedra em pó vai se transformar,
Você não vê que a vida corre com o tempo
Sou um castelo de areia na beira do mar.

(Ar, Ar)

Eu sou nuvem passageira,
Que com o vento se vai,
Eu sou como um cristal bonito
Que se quebra quando cai.

A lua cheia convida para um longo beijo
Mas o relógio te cobra o dia de amanhã
Estou sozinho, perdido e louco no meu leito,
E a namorada analisada por sobre o divã.

(Ar, Ar, Ar) (Ar, Ar,Ar)

Por isso agora o que eu quero e dançar na chuva
Não quero nem saber de me fazer ou me matar
Ou vou deixar um dia fique a minha energia
Sou um castelo de areia na beira do mar
Eu sou nuvem passageira,
Que com o vento se vai,
Eu sou como um cristal bonito
Que se quebra quando cai.

Eu sou nuvem passageira,
Que com o vento se vai,
Eu sou como um cristal bonito
Que se quebra quando cai.

Que se quebra quando cai

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Lua Solitária - Juan Ramón Jímenez


"Eu não voltarei. E a noite

morna, serena, calada,

adormecerá tudo, sob

sua lua solitária".

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Agora que morri de um amor incurável_ Mª Rosário Pedreira


Agora que morri de um amor incurável já não consigo
lembrar o que doeu. Olho o meu corpo estendido
sobre a cama e dou comigo a descrever a sua geografia
com o rigor invejável de um compêndio ― mas como
alguém que apenas conhecesse o mundo pelos mapas.


A morte separa-nos da dor e da sua memória ― se dobrares
neste instante o ângulo do corredor que conduz ao meu
quarto, decerto saberei o teu nome e os nomes das flores
que me trouxeres ― mas já terei esquecido o desencanto
de não as ter recebido noutro tempo, quando morrer de amor
não tinha ainda perdido o efémero estatuto de metáfora.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Venho de Dentro. abiru-se a porta : Luísa Neto Jorge



Venho de dentro, abriu-se a porta:

nem todas as horas do dia e da noite

me darão para olhar de nascente

a poente e pelo meio as ilhas.



Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo

de só imaginá-la a luz fulmina-me,

na outra face ainda é sombra


Banhos de sol

nas primeiras areias da manhã

Mansidões na pele e do labirinto só

a convulsa circunvolução do corpo.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

As últimas Vontades _David Mourão Ferreira


As últimas vontades
Deixa ficar a flor,
a morte na gaveta,
o tempo no degrau.

Conheces o degrau:
o sétimo degrau
depois do patamar;
o que range ao passares;
o que foi esconderijo
do maço de cigarros
fumado às escondidas...

Deixa ficar a flor.
E nem murmures.Deixa
o tempo no degrau,
a morte na gaveta.

Conheces a gaveta:
a primeira da esquerda,
que se mantém fechada.
Quem atirou a chave
pela janela fora?

Na batalha do ódio,
destruam-se,fechados,
sem tréguas,os retratos!

Deixa ficar a flor.
A flor? Não a conheces.
Bem sei.Nem eu.Ninguém.
Deixa ficar a flor.
Não digas nada.Ouve.
Não ouves o degrau?
Quem sobe agora a escada?
Como vem devagar!
Tão devagar que sobe...
Não digas nada.Ouve:
é com certeza alguém,
alguém que traz a chave.

Deixa ficar a flor.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Esta Manhã Encontrei o teu nome _Mª do Rosário Pedreira

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
...de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama
e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

Boa Noite_ Albano Martins

A tarde

diz ao dia:
- Boa noite!



(in "Com as Flores do Salgueiro", 1995)

O Rouxinol_ALBANO MARTINS


O rouxinol não sabe
que o seu canto
é verde.



(in "Com as flores do Salgueiro", 1995)

manuel 6 vezes pensei em ti _ Àlamo de Oliveira



Manuel
quando pensei em ti     pella primeira vez 
usavas um bibi de sorrisos
atado com dois laços incertos
quase sempre rôtos e sujos
porque a tua mãe não ganhava para sabão.

quando pensei em ti pela segunda vez
vi-te correr suspenso a uma borboleta
ainda nu de preconceitos
com calções de ideias curtas
sem dúvidas nem venenos
eras a verdade dos pássaros
na tua liberdade que desconhecias.

quando pensei em ti    pela  terceira vez
já tinhas mastigado a terra dos milhos
sugado     com a ponta da inteligência
o teu suor dos outros
num cálice talhado de rocha negra
banhavas o cérebro e os desejos
num avião da pan america.
começavas a sentir a ilha no pescoço
como uma coleira de cão.

quando pensei em ti     pela quarta vez
eras o contrário do movimento.
Um sexo enorme devorava-te    manuel,
e a tua adolescêmcia ultrapassada
estava resumida nas tuas galças de ganga
e numa camisa despovoada
que ratinhos inconformados ruminavam
até te espetares na margarida
- uma flor que nem sequer tem espinhos
os teus pés descalços eram o retrato do teu povo.


o cordão umbilical do teu casamento.
a ilha era a tua cama (e a dos outros)
e tu tinhsa a consciência de que eras incapaz
de desflorar a margarida
na tua ilha de parasitas e insectos
na tua ilha sebenta e recheada de pobres
-de pele e de espírito -
como tu e como eu e como...
como o nosso deus feito ilhéu.

quando pensei em ti    pela última vez
tinhas três filhos gerados nos teus olhos
e un cacho de esperanças murchas
pendurado no alpendre da tua fantasia.

manuel
o melhor é nem pensar
nos rebuçados que não comeste na infância.          

In "Triste Vida Leva a Garça"

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A Minha Casinha_Fátima Ramos

Ilha Terceira Vila Nova
Casa de Chaminé de Mãos Postas 





A minha casinha
vai ser tão singela
alva e branquinha,
janelas e portas
debruadas
a amarelo
para que o sol
e a alegria
a venham
visitar.


A minha casinha
vai ter as mãos
postas em oração
nas chaminés
no telhado
pedindo aos Céus
Ventura e Benção,
e um jardim imenso
com mil e uma hortênsias
cercado de verdes
cerrados e
no horizonte,
sempre visível,
o Azul profundo
e a imensidão do mar.

Nossos














Nossos
Só o silêncio
e os ossos

Só esta breve e vã
laboração

Só esta leve má-
quina da mão

Só este mó-
vel mó
do coração

Nossos
só o silêncio
e os ossos

Atlântida _Vasco Pereira da Costa

Quando uma ilha se afunda
deixa na linha do horizonte a dúvida
e espalha círculos vazios no mar
- que são perguntas diluídas, imagens
de nuvens, sintaxe de silêncio,
deuses perdidos, memórias do esquecimento.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Posse_Leonor de Almeida

Vem cá! Assim, verticalmente!
Achega-te...Docemente...
Vou olhar-te...E, no teu olhar, colher
Promessas do quero prometer,
Até à síncope de amor na alma!
Colemos as mãos, palma a palma!
A minha boca na tua, sem beijo...
Desejo-te, até o desejo
Se queixar que dói...

E sou tua, assim, como nenhuma foi!


in " Caminhos Frios"

A música que ecoa - Fátima Ramos

Dia e noite, a música,
sempre a mesma música,
ecoa em mim.
Tento calá-la
mas prossegue,
mais alta na escuridão,
quase imperceptível
à luz da alegria
dos que me rodeiam.
Mas está lá, sempre lá,
lembrando a
razão de eu estar triste,
e que a tua presença em mim
persiste.
Por mais que não queira,
Tu e triste música estão comigo,
presentes ostensivamente no
meu silêncio, na minha solidão,
nas minhas noites em claro,
quando a canto, quando a calo.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Foder-te Amor __ Pedro Chagas Fragas

Caminho pelo lado da rebentação das ondas_ Mª do Rosário Pedreira


Caminho pelo lado da rebentação das ondas ―
o litoral guarda segredo dos meus passos entre
as redes de sal trazidas pelos barcos
o labirinto das algas ainda agora oferecidas

à praia. Sinto-me à mercê das falésias a riscar
o teu nome na areia; e é como se lentamente
pronunciasse um chamamento triste a que ninguém
acode. Fez-se tarde para os lamentos das sereias:

agora as marés dobam novelos de espuma à roda
dos meus pés, as águas já não transportam
a minha voz, a perder-se sobre as dunas
que os ventos vão desbastando devagar

ao cair da noite. Tenho sempre medo que não voltes.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Fado _ Mª Rosário Pedreira

Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses: as ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
as praças açoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.


A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu
estou assustada. A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo que não voltes.

Morna (lembrança de Cabo Verde)_Maria Almira Medina

A lua ensinou
as mãos de Celso Estrela
a dar ritmo ao violão.
A noite desceu,
desceu
e sentou-se a escutar.
Um rio de música brotou
entre dedos e cordas
e correu manso para o mar.
Fez domingo na boca do Agostinho
e a noite desmaiou.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Distância_Cindy Kat / Ricardo Camacho

http://emtonsdeazul2.blogspot.com/2011/01/distancia-cindy-kat.html

De noite fico acordado
Por não te ter a meu lado
Só penso em ti
Só penso em ti

Esqueci os sonhos na esperança
De encontrar paz na distância
Só penso em ti
Só penso em ti

E eu não vou poder ser
A certeza desse amor
Aquele que te faz voltar
E eu não vou poder ser
Aquele que não ficou
Perdido sem o teu olhar

Penso em ti
Penso em ti

E eu não vou poder ser
A certeza desse amor
Aquele que te faz voltar
E eu não vou poder ser
Aquele que não ficou
Perdido sem o teu olhar.

Agora acordo com medo
De ter esquecido o teu nome
Só penso em ti
Só penso em ti

Tão grande é o silêncio
Onde se perdem os dias
Só penso em ti
Só penso em ti

E eu não vou poder ser
A certeza desse amor
Aquele que te faz voltar
E eu não vou poder ser
Aquele que não ficou
Perdido sem o teu olhar

Sete Luas_Natália Correia

Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas.


Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.


Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.

Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O Rosto aquele rosto _José Maria de Aguiar Carreiro

Entre portas um aveludado rosto
prenuncia: logo existe o meu espaço.
Eu toco então aquele rosto este rosto
aquele rosto
conheço as mãos no corpo no rosto
o toque desfasado toque
na quase intimidade do olhar
o beijo.

Hoje acabo o desenho das letras
desenho rosto
pronuncio-o e tu és lá
roço nele até à precisão do t
mas o que fica é esta preparação para o beijo
que a vogal me coloca.

Digo o teu nome
os dentes tocam o lábio inferior
e aí começo a saborear-te
toda a boca te trabalha
um som nasal ressoa no crânio
mexe-me.



in "Chuva de Época"

O Gato_António Gedeão



Quem há-de abrir a porta ao gato
quando eu morrer?

Sempre que pode
foge prá rua
cheira o passeio
e volta para trás,
mas ao defrontar-se com a porta fechada
(pobre do gato!)
mia com raiva
desesperada.

Deixo-o sofrer
que o sofrimento tem sua paga,
e ele bem sabe.

Quado abro a porta corre para mim
como acorre a mulher aos braços do amante.
Pego-lhe ao colo e acaricio-o
num gesto lento,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos,
olhos semi-cerrados, em êxtase,
ronronando.

Repito a festa,
vagarosamente,
do alto da cabeça até ao fim da cauda.
Ele aperta as maxilas,
cerra os olhos,
abre as narinas,
e rosna,
rosna, deliquescente,
abraça-me
e adormece.

Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

Auto-retrato_Natália Correia


Artur Bual - 'Natália Correia', óleo sobre tela

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.




quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

NÃO VÊS O LEÃO DO ZOO?! _ Carlos Jesus Gil


Pedes-me asilo?

Sim, acoito-te.

...Acoito-te

Não te resguardo

Que assim não crias defesas.

Não vês o leão do zoo?!



(Publicado a autorização do autor. A transcrição deve mencionar o autor (Carlos Jesus Gil) e a fonte de publicação)

Porque me olhas assim..._ Fausto

http://emtonsdeazul2.blogspot.com/2011/01/porque-me-olhas-assim-fausto.html


Diz-me agora o teu nome
se já dissemos que sim
pelo olhar que demora
porque me olhas assim
porque me rondas assim
Toda a luz da avenida
se desdobra em paixão
magias de druida
pelo teu toque de mão
soam ventos amenos
pelos mares morenos
do meu coração.

Espelhando as vitrinas
da cidade sem fim
tu surgiste divina
porque me abeiras assim
porque me tocas assim
e trocámos pendentes
velhas palavras tontas
com sotaque diferentes
nossa prosa está pronta
dobrando esquinas e gretas
pelo caminho das letras
que tudo o resto não conta

E lá fomos audazes
por passeios tardios
vadiando o asfalto
cruzando outras pontes
de mares que são rios
e num bar fora de horas
se eu chorar perdoa
ó meu bem é que eu canto
por dentro sonhando
que estou em Lisboa

Dizes-me então que sou teu
que tu és toda pra mim
que me pões no apogeu
porque me abraças assim
porque me beijas assim
por esta noite adiante
se tu me pedes enfim
num céu de anúncios brilhantes
vamos casar em Berlim
à luz vã dos faróis
são de seda os lençóis
porque me amas assim.

palavrasoltas_Álamo de Oliveira


nesta tarde de silêncio segurado
a palavra sai domingueira e falsa.

nada sustenta a noite dos vampiros
e prepara-se a novena duma mulher descalça.

as casas da cidade vão retelhar-se de luar
os cinemas estão vestidos com os cartazes na testa.

grande grande é a nudez da baía
que sem barcos já não quer ir á festa.

e eu escrevo porque não suporto a tarde
e eu escrevo porque gosto de amar.

mas não me lastimem o gosto nem a voz
de verdade eu sei que não sei cantar...

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A Magnólia_Luiza Neto Jorge

A exaltação do mínimo,

e o magnífico relâmpago

do acontecimento mestre

restituem a forma

o meu resplendor.


Um diminuto berço me acolhe

onde a palavra se elide

na matéria — na metáfora —

necessária, e leve, a cada um

onde se ecoa e resvala.


A magnólia,

o som que se desenvolve nela

quando pronunciada,

é um exaltado aroma

perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico

desfolhando relâmpagos

sobre mim.

Outra Voz_ Mª do Rosário Pedreira

Ela não pediu esse silêncio. Mas também nada fez
para defender-se dele ou dominá-lo. Quando entrou,
a casa tinha-se calado de repente, as coisas dele
tinham mudado de lugar, desaparecido, e não importava
que tivesse sido ela própria a escondê-las, de véspera,
na arca das lãs que só voltaria abrir no inverno.

Ela não quis conhecer esse silêncio. Soube apenas
que não voltaria a ouvir a voz dele
no espelho do seu quarto ― a outra voz.

Sentou-se no chão e abriu um pequeno livro de capa azul.
Naquele fim de tarde, só mesmo os livros podiam dizer
algo mais que o silêncio ― essa outra voz.

Coro dos Velhos do Corvo _ Vasco Pereira da Costa,

Um dia demos as mãos
subimos ao pico da ilha.




Num rochedo fomos gerados pelo amor
da solidão. Nascemos do mar e da pedra.
Meninos brincámos ao tempo o único
brinquedo que nossos avós forjaram
na navalha das noites aluadas.
Éramos a chuva que inundava
nossos pés sem caminhos de andar.
Éramos o vento em correria na vertente
do pico que nos vencia.
Éramos o sol aquecendo nossa pele
de sal ardente e maresia.
Alguns tiveram um barco no silêncio
da viagem para oeste apetecida
e disseram haver e ser atalhos
sem fim e terras sem mar.
Mas ficámos presos ao verde
que atapeta nosso rochedo
e nosso sonho na partida adiada.

Anediámos os úberes das vacas
os seios de uma mulher
os flancos das ove1has.
Apetecemos os pêlos das raízes
o orvalho dos lábios a doçura
das ervas nas manhãs brandas.
Falámos amor num só dia
e calámos. A nossa raiva
num instante emudecida.
Os nossos gestos desperdiçados
numa hora. Depois voltámos
a olhar o mar e éramos
homens no limite da vida.
Revolvemos o caldeirão plantámos
o milho e a novidade soubemos
curar o queijo erguer labaredas
na pá do forno na paz da cozinha.
Criamos filhos no embalo
dos dedos no arame da viola
no baloiço da onda na voz
da mulher que os parira. Que também
eles tinham sido gerados
pela solidão do mar e da pedra.

Um dia demos as mãos
subimos ao pico da ilha.
Aos filhos revelámos a cratera
a lagoa com ilhotas figurando outras
terras de só ter o mar.
Dissemos os verdes diferentes
de ver a chuva o vento o sol.
Apontámos a distinção do céu
e das águas confundidas.
E mostramos um barco para oeste
no murmúrio da viagem incitada.

Ficámos. À navalha raspamos
o tempo para os netos que não temos.
Tropeçamos nos carreiros os passos
que não se dão. Contamos nos degraus
da igreja as palavras ditas
da dita de quem partiu. Desenhamos
no terreiro traços do que calamos
? a única coisa que temos.
E mais a ilha. Cá estamos.

Gloria Efémera _ António Arnaut

O rosto do cartaz eleitoral
sobre um fundo de promessas, a sorrir
lembrava um maioral
a franquear as portas do porvir.

Vota! O apelo era um alaúde
a embalar a fome atávica da grei;
haverá trabalho, habitação, saúde,
tudo o que até agora não vos dei.

Mas o vento límpido, ingrato
naquele domingo de eleições
ia desfazendo o candidato
em cruéis, frenéticos rasgões.

E quando a noite desceu
um varredor indeciso,
sonâmbulo, varreu
os últimos detritos do sorriso.

Mar com poeta dentro _ Álamo Oliveira

Foto de Fátima Ramos
Pico, Agosto de 2008
O corpo da ilha não tem nome
próprio de quem se rodeia de orvalhos antigos.
quando navega não tem
rumo nem destino.
no cais a penumbra branca desce
sobre a viagem adormecida.

desconhece-se que poeta foi ver o mar por dentro.
mas sabe-se quem grafitou com sonhos
os muros da solidão.