sexta-feira, 25 de junho de 2010
Fado Gago
Fado triste
fado negro das vielas
onde, agora é que săo elas
encomendaram-me este fado
"...- Mas só se for falado..."
Fado falado?
Pagam bem e dăo trocado
o fado é pago!
Mas eu que sou gago
só consigo balbuciar...
(melhor cantar:)
Măos caprichosas
que sebosas
mimoseiam a guitarra
mimoseando
o fado nefando
que se entranha
nas vielas
măos tagarelas
indecentes
măos tăo juntas, tăo ardentes
os dedos quentes
insolentes
só se amainam na guitarra
Espera aí
já percebi
que entoando
mesmo falando, mesmo falando
se falar como que em verso
năo gaguejo e até converso
(como as tais măos na guitarra...)
Eram assim essas măos
măos de ferro e măos de farra
desse Chico de má-vida
que (p'ra ser fiel à história)
andava na boa-vida
com a Glória
e está bom de ver
que o mulherio de Alfama
que é todo de alta linhagem
achava aquilo suspeito: vem de viagem
esse Chico marinheiro, todo feito
e vá de pendurar a âncora
na varanda da pequena
(Estăo a ver a cena...)
E está bom de imaginar
(mesmo sem ver)
que dentro desse lugar
o que tinha a mercearia mesmo em
frente
tudo era transparente
o Chico, quando dormia
era marinheiro em terra
era a paz depois da guerra, a sua Glória
por isso dormiam juntos
sem divisória
Măos muito sábias
tantas lábias
nas linhas das quatro palmas
săo duas almas
irmanadas
pelas sinas da paixăo
corpo na măo
măo que esvoaça
e amordaça
a sensatez
e cada vez
que o fado canta
esqueço tanta
da gaguez
Mas um dia - há sempre um dia
(Moeda ao ar!)
a cara e a coroa
viram a sorte mudar
vamos lá explicar
É que o Chico, c'a memória
de ter amor de mulher
vez à vez, em cada porto
năo cuidou de amar a Glória
foi-se à fruta no pomar
deixou a planta no horto
ou seja:
resolveu catrafilar
toda a mulher que passava
na rua por onde a Glória - e aqui vai
mas desta história -
espreitava
Ah! Que a Glória é mulher tesa...
quando viu o Chico
rua abaixo, rua acima
atracado a uma 'pirua'
uma garina
de resto bem conhecida
daquelas que faz p'la vida
e ela toda pimpante
e ele todo galante
Veio-lhe à boca o ciume
e a navalha foi lume
brilhando de raiva
todo este bairro, que saiba
que os dois que ali văo
văo ter de morrer
ai, vai correr muito sangue
eu esfolo, estrafego
eu pego nos dois
atiro as carcaças ao rio
e nem olho p'ra trás
tudo isto faz
alarido
e o Chico já ferido
só tenta dizer:
- Glória, que fazes?
Que morro sem quase
ter tempo de me arrepender
dá-me uma oportunidade
e nesta cidade
eu prometo ser teu
eu quero morrer no mar alto
e depois ir p'ró céu
Măos homicidas
amanticidas
assim eram se năo fosse
o olhar doce
por um instante
desse homem tăo inconstante
măos que da Glória
tęm o nome
e em seu nome văo amar
eu fico gago
com o afago
que essas măos souberam dar
E o afagar dessas măos
já desenha na pele
a promessa futura
- Jura, vá jura que és
todo meu 'té ao fim
todo, todo de mim
- Glória, vou desembarcar
dessa vida em que andava
à deriva no amor
- Chico, os meus braços de mar
dăo-te abrigo e calor
E assim acaba esta história
o Chico e a Glória
está bom de se ver
ambos com vidas atrás
văo atrás de uma vida
em que é tudo viver
quem fala assim
năo é gago
(năo quero voltar a um assunto
encerrado)
mas...
digam-me lá
se eu năo sou gago
e canto o fado
***
Fado Gago - Noites Passadas" 1995