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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A Defesa do Poeta _ Natália Correia

Senhores jurados sou um poeta

um multipétalo uivo um defeito

e ando com uma camisa de vento

ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis

de armazenado espanto e por fim

com a paciência dos versos

espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos

(curtido couro de cicatrizes)

uma avaria cantante

na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade

o vosso enfarte serei

não há cidade sem o parque

do sono que vos roubei

Senhores professores que puseste

a prémio minha rara edição

de raptar-me em crianças que salvo

do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho

de em pó volverdes sois os reis

sou um poeta jogo-me aos dados

ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes

puro exercício de ninguém

minha cobardia é esperar-vos

umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e sete

que medo vos pôs na ordem ?

que pavor fechou o leque

da vossa diferença enquanto homem ?

Senhores juízes que não molhais

a pena na tinta da natureza

não apedrejeis meu pássaro

sem que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta

de um verso onde o possa escrever

ó subalimentados do sonho !

a poesia é para comer.

domingo, 23 de janeiro de 2011

A POLÍTICA DO DIA _Natália Correia


Hoje a vida tem o sorriso

dentífrico dos candidatos

e pelas ruas nos aponta

o céu, em múltiplos retratos.



Céu não póstumo ou merecido

em cruel sala de espera

mas entre parêntesis de fogo

festiva véspera de guerra


Teor de montras a vida

com democrático humor

a todos deixa viver

a sua dose de flor.


Publicitária a vida faz

sua campanha eleitoral

prato de vida apetitosa

temperada com humano sal


Televisor férias de verão

tira a vida do seu discurso

e um amor provençal

que nos domestica o urso


Popular a vida é toda

pétalas de apertos de mão.

Que meus versos me vinguem

de cair nesse alçapão!

sábado, 22 de janeiro de 2011

Paz _ Natália Correia


Irreprimível natureza

exacta medida do sem-fim

não atinjas outras distâncias

que existem dentro de mim.



Que os meus outros rostos não sejam

o instável pretexto da minha essência.

Possam meus rios confluir

para o mar duma só consciência.



Quero que suba à minha fronte

a serenidade desta condição:

harmonia exterior à estátua

que sabe que não tem coração.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Fiz um Conto para me Embalar


Fiz com as fadas uma aliança.

A deste conto nunca contar.

Mas como ainda sou criança

Quero a mim própria embalar.



Estavam na praia três donzelas

Como três laranjas num pomar.

Nenhuma sabia para qual delas

Cantava o príncipe do mar.



Rosas fatais, as três donzelas

A mão de espuma as desfolhou.

Nenhum soube para qual delas

O príncipe do mar cantou.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Boa Noite_ Albano Martins

A tarde

diz ao dia:
- Boa noite!



(in "Com as Flores do Salgueiro", 1995)

O Rouxinol_ALBANO MARTINS


O rouxinol não sabe
que o seu canto
é verde.



(in "Com as flores do Salgueiro", 1995)

manuel 6 vezes pensei em ti _ Àlamo de Oliveira



Manuel
quando pensei em ti     pella primeira vez 
usavas um bibi de sorrisos
atado com dois laços incertos
quase sempre rôtos e sujos
porque a tua mãe não ganhava para sabão.

quando pensei em ti pela segunda vez
vi-te correr suspenso a uma borboleta
ainda nu de preconceitos
com calções de ideias curtas
sem dúvidas nem venenos
eras a verdade dos pássaros
na tua liberdade que desconhecias.

quando pensei em ti    pela  terceira vez
já tinhas mastigado a terra dos milhos
sugado     com a ponta da inteligência
o teu suor dos outros
num cálice talhado de rocha negra
banhavas o cérebro e os desejos
num avião da pan america.
começavas a sentir a ilha no pescoço
como uma coleira de cão.

quando pensei em ti     pela quarta vez
eras o contrário do movimento.
Um sexo enorme devorava-te    manuel,
e a tua adolescêmcia ultrapassada
estava resumida nas tuas galças de ganga
e numa camisa despovoada
que ratinhos inconformados ruminavam
até te espetares na margarida
- uma flor que nem sequer tem espinhos
os teus pés descalços eram o retrato do teu povo.


o cordão umbilical do teu casamento.
a ilha era a tua cama (e a dos outros)
e tu tinhsa a consciência de que eras incapaz
de desflorar a margarida
na tua ilha de parasitas e insectos
na tua ilha sebenta e recheada de pobres
-de pele e de espírito -
como tu e como eu e como...
como o nosso deus feito ilhéu.

quando pensei em ti    pela última vez
tinhas três filhos gerados nos teus olhos
e un cacho de esperanças murchas
pendurado no alpendre da tua fantasia.

manuel
o melhor é nem pensar
nos rebuçados que não comeste na infância.          

In "Triste Vida Leva a Garça"

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A Minha Casinha_Fátima Ramos

Ilha Terceira Vila Nova
Casa de Chaminé de Mãos Postas 





A minha casinha
vai ser tão singela
alva e branquinha,
janelas e portas
debruadas
a amarelo
para que o sol
e a alegria
a venham
visitar.


A minha casinha
vai ter as mãos
postas em oração
nas chaminés
no telhado
pedindo aos Céus
Ventura e Benção,
e um jardim imenso
com mil e uma hortênsias
cercado de verdes
cerrados e
no horizonte,
sempre visível,
o Azul profundo
e a imensidão do mar.

Atlântida _Vasco Pereira da Costa

Quando uma ilha se afunda
deixa na linha do horizonte a dúvida
e espalha círculos vazios no mar
- que são perguntas diluídas, imagens
de nuvens, sintaxe de silêncio,
deuses perdidos, memórias do esquecimento.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Sete Luas_Natália Correia

Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas.


Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.


Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.

Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O Rosto aquele rosto _José Maria de Aguiar Carreiro

Entre portas um aveludado rosto
prenuncia: logo existe o meu espaço.
Eu toco então aquele rosto este rosto
aquele rosto
conheço as mãos no corpo no rosto
o toque desfasado toque
na quase intimidade do olhar
o beijo.

Hoje acabo o desenho das letras
desenho rosto
pronuncio-o e tu és lá
roço nele até à precisão do t
mas o que fica é esta preparação para o beijo
que a vogal me coloca.

Digo o teu nome
os dentes tocam o lábio inferior
e aí começo a saborear-te
toda a boca te trabalha
um som nasal ressoa no crânio
mexe-me.



in "Chuva de Época"

Auto-retrato_Natália Correia


Artur Bual - 'Natália Correia', óleo sobre tela

Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.




quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

palavrasoltas_Álamo de Oliveira


nesta tarde de silêncio segurado
a palavra sai domingueira e falsa.

nada sustenta a noite dos vampiros
e prepara-se a novena duma mulher descalça.

as casas da cidade vão retelhar-se de luar
os cinemas estão vestidos com os cartazes na testa.

grande grande é a nudez da baía
que sem barcos já não quer ir á festa.

e eu escrevo porque não suporto a tarde
e eu escrevo porque gosto de amar.

mas não me lastimem o gosto nem a voz
de verdade eu sei que não sei cantar...

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Coro dos Velhos do Corvo _ Vasco Pereira da Costa,

Um dia demos as mãos
subimos ao pico da ilha.




Num rochedo fomos gerados pelo amor
da solidão. Nascemos do mar e da pedra.
Meninos brincámos ao tempo o único
brinquedo que nossos avós forjaram
na navalha das noites aluadas.
Éramos a chuva que inundava
nossos pés sem caminhos de andar.
Éramos o vento em correria na vertente
do pico que nos vencia.
Éramos o sol aquecendo nossa pele
de sal ardente e maresia.
Alguns tiveram um barco no silêncio
da viagem para oeste apetecida
e disseram haver e ser atalhos
sem fim e terras sem mar.
Mas ficámos presos ao verde
que atapeta nosso rochedo
e nosso sonho na partida adiada.

Anediámos os úberes das vacas
os seios de uma mulher
os flancos das ove1has.
Apetecemos os pêlos das raízes
o orvalho dos lábios a doçura
das ervas nas manhãs brandas.
Falámos amor num só dia
e calámos. A nossa raiva
num instante emudecida.
Os nossos gestos desperdiçados
numa hora. Depois voltámos
a olhar o mar e éramos
homens no limite da vida.
Revolvemos o caldeirão plantámos
o milho e a novidade soubemos
curar o queijo erguer labaredas
na pá do forno na paz da cozinha.
Criamos filhos no embalo
dos dedos no arame da viola
no baloiço da onda na voz
da mulher que os parira. Que também
eles tinham sido gerados
pela solidão do mar e da pedra.

Um dia demos as mãos
subimos ao pico da ilha.
Aos filhos revelámos a cratera
a lagoa com ilhotas figurando outras
terras de só ter o mar.
Dissemos os verdes diferentes
de ver a chuva o vento o sol.
Apontámos a distinção do céu
e das águas confundidas.
E mostramos um barco para oeste
no murmúrio da viagem incitada.

Ficámos. À navalha raspamos
o tempo para os netos que não temos.
Tropeçamos nos carreiros os passos
que não se dão. Contamos nos degraus
da igreja as palavras ditas
da dita de quem partiu. Desenhamos
no terreiro traços do que calamos
? a única coisa que temos.
E mais a ilha. Cá estamos.

Mar com poeta dentro _ Álamo Oliveira

Foto de Fátima Ramos
Pico, Agosto de 2008
O corpo da ilha não tem nome
próprio de quem se rodeia de orvalhos antigos.
quando navega não tem
rumo nem destino.
no cais a penumbra branca desce
sobre a viagem adormecida.

desconhece-se que poeta foi ver o mar por dentro.
mas sabe-se quem grafitou com sonhos
os muros da solidão.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O Poema _ Natália Correia

O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.

É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.

Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.

E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.

Sinais Que No Amor Se Adiantam - Natália Correia

No teu olhar se esfuma e desvanece
A cidade onde o corpo por enquanto é preciso.
É quando a outra face do luar aparece
E o balir das ovelhas tem o som do meu riso.
Para tapar meu seio já nenhum astro tece
A roupa com que outrora saí do paraíso.
O pudor é da terra. Só por isso anoitece
E a nudez dos amantes é não darem por isso.
A semente do filho que em nós amadurece
Trouxe-a no bico a pomba que o seu reino prepara.
Por isso na cidade já ninguém nos conhece
Pois que ambos trazemos esse filho na cara.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Retrato Talvez Saudoso da Menina Insular - Natália Correia

Tinha o tamanho da praia
o corpo era de areia.
Ele próprio era o início
do mar que o continuava.
Destino de água salgada
principiado na veia.
E quando as mãos se estenderam
a todo o seu comprimento
e quando os olhos desceram
a toda a sua fundura
teve o sinal que anuncia
o sonho da criatura.
Largou o sonho nos barcos
que dos seus dedos partiam
que dos seus dedos paisagens
países antecediam.
E quando o seu corpo se ergueu
Voltado para o desengano
só ficou tranquilidade
na linha daquele além.
Guardada na claridade
do olhar que a retém.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

NATAL CHIQUE - Vitorino Nemésio


Percorro o dia, que esmorece

Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.


Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.


Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.

domingo, 10 de outubro de 2010

azorean torpor




Um céu de algodão sujo tolda o arquipélago das nove ilhas; o mormaço apaga os contornos do mar e da terra, e, amolecendo os pastos à custa da pele do proprietário e do pastor, dilui e arrasta as vontades, dá a homens e a coisas uma doença quase de alma, a que os ingleses, médicos do bem-estar, puseram uma etiqueta como quem descobre uma planta nova neste mundo seco e velho: — azorean torpor.


Vitorino Nemésio, Mau tempo no canal,

Lisboa, Bertrand, 1944 (1ª ed.)