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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros_Mª do Rosário Pedreira


O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros.
As tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras
são pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos
outros pelo tempo destas entrelinhas - longe de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar

a primeira página: em fevereiro, eles ainda faziam amor
à sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia
laranjas numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar
ao domingo, cabelos curtos colados teimosamente ao espelho.
Às vezes, chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro,
antes de se despedirem. As vezes, repartiam sofregamente
a infância, postais antigos, o silêncio - nada

aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha,
à verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as histórias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém.


in "A Casa e o Cheiro dos Livros"

sábado, 7 de maio de 2011

NÃO VOLTEI A ESSE CORPO___Mª do Rosário Pedreira


Não voltei a esse corpo; e não sei

se aqueles que o vestiam antes e depois

de mim souberam nele o verdadeiro calor

...e lhe conheceram os perigos, os labirintos,

as pequenas feridas escondidas. Não voltarei

provavelmente a sentir a respiração

palpitante desse corpo, desse lugar onde as ondas

rebentavam sempre crespas junto do peito, do meu peito

também, às vezes.



Uma noite outro corpo virá lembrar essa maresia,

o cheiro do alecrim bruscamente arrancado à falésia.

E eu ficarei de vigília para ter a certeza de quem me

recolheu,

porque os cheiros tornam os lugares parecidos, confundíveis.



Quando a manhã me deixar de novo sozinha no meu quarto

trocarei os lençóis da cama por outros, mais limpos.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Antes de um lugar há o seu nome_Maria Rosário Pedreira

Antes de um lugar há o seu nome. E ainda

a viagem até ele, que é um outro lugar

mais descontínuo e inominável.


Lembro-me

do quadriculado verde das colinas,

do sol entretido pelos telhados ao longe,

dos rebanhos empurrados nos carreiros,

de um cão pequeno que se atreveu à estrada.


Íamos ou vínhamos?

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Agora que morri de um amor incurável_ Mª Rosário Pedreira


Agora que morri de um amor incurável já não consigo
lembrar o que doeu. Olho o meu corpo estendido
sobre a cama e dou comigo a descrever a sua geografia
com o rigor invejável de um compêndio ― mas como
alguém que apenas conhecesse o mundo pelos mapas.


A morte separa-nos da dor e da sua memória ― se dobrares
neste instante o ângulo do corredor que conduz ao meu
quarto, decerto saberei o teu nome e os nomes das flores
que me trouxeres ― mas já terei esquecido o desencanto
de não as ter recebido noutro tempo, quando morrer de amor
não tinha ainda perdido o efémero estatuto de metáfora.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Esta Manhã Encontrei o teu nome _Mª do Rosário Pedreira

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
...de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama
e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Caminho pelo lado da rebentação das ondas_ Mª do Rosário Pedreira


Caminho pelo lado da rebentação das ondas ―
o litoral guarda segredo dos meus passos entre
as redes de sal trazidas pelos barcos
o labirinto das algas ainda agora oferecidas

à praia. Sinto-me à mercê das falésias a riscar
o teu nome na areia; e é como se lentamente
pronunciasse um chamamento triste a que ninguém
acode. Fez-se tarde para os lamentos das sereias:

agora as marés dobam novelos de espuma à roda
dos meus pés, as águas já não transportam
a minha voz, a perder-se sobre as dunas
que os ventos vão desbastando devagar

ao cair da noite. Tenho sempre medo que não voltes.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Outra Voz_ Mª do Rosário Pedreira

Ela não pediu esse silêncio. Mas também nada fez
para defender-se dele ou dominá-lo. Quando entrou,
a casa tinha-se calado de repente, as coisas dele
tinham mudado de lugar, desaparecido, e não importava
que tivesse sido ela própria a escondê-las, de véspera,
na arca das lãs que só voltaria abrir no inverno.

Ela não quis conhecer esse silêncio. Soube apenas
que não voltaria a ouvir a voz dele
no espelho do seu quarto ― a outra voz.

Sentou-se no chão e abriu um pequeno livro de capa azul.
Naquele fim de tarde, só mesmo os livros podiam dizer
algo mais que o silêncio ― essa outra voz.

Pedro _ Mª do Rosário Pedreira

Contavam as sereias que na tempestade os seus olhos
os barcos adormeciam tontos, cansados das marés;
que os seus beijos sabiam a mar e que na sua pele crestada
pelo sol havia cintilância das ondas ao meio-dia;
que os seus ombros lembravam promontórios e que neles
as mulheres deixavam naufragar as mãos e os lábios;
que uma noite tocara a lua com os seus dedos mastros
e ouvira uma voz dentro de si, vinda de muito longe;
que era hábil com as redes, como com as palavras.

Alguém veio pedir-lhe que abandonasse os peixes
pelos homens. Em troca, receberia
um templo eterno, uma chave, o privilégio de decidir
todos os lugares a chuva, um nome novo
para poder negar tudo o que vira antes.