sábado, 28 de agosto de 2010

«Vae ser pedida. Casa qualquer dia» – Augusto Gil















Tive noticias hoje a teu respeito:

«Vae ser pedida. Casa qualquer dia».

E o coração tranquillo no meu peito

–Continuou a bater como batia…



Surpreso duma tal serenidade,

Todo eu, intimamente, me sondava:

Pois nem ciume? Nem sequer saudade?!

–E nem ciumes, nem saudade achava…



Saudades, não; que o teu amor antigo

Guardam-no as cinzas (neste coração)

Como em Pompeia aquelles grãos de trigo

Que após centenas d’annos deram pão…



Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu

A lei antiga como o proprio mundo

De que o prazer mal chega, já morreu,

E só a dôr nas almas cava fundo?



Causei-te longas horas d’amargura,

Não consegues voltar a ser feliz;

A chaga que te abri não terá cura,

E se curar–lá fica a cicatriz.



Á luz dum juramento que trahiste

Tu has de vêr-me toda a vida pois.

Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste

E Deus casou-nos esse dia, aos dois…



Ciumes tambem não, por te venderes.

Desgraçadinha! Antes te houvesses dado;

Não descerias tanto entre as mulheres,

Seria mais humano o teu peccado.



Porém, embora a tua falta aponte,

P’ra mim és a que foste (ou que eu suppuz);

O sol desapparece no horisonte

–E a gente vê-o ainda a dar-nos luz…



Póde a desgraça erguer em frente a mim

Altas montanhas d’elevados cumes.

O sol do amôr doiral-as-ha, e assim,

Vendo-o tão alto, não terei ciumes.



Ciumes! Elle é que hade tel-os, quando,

Em claras noites de luar silente,

Ouvir vibrar alguma voz, cantando

Os versos que te fiz devotamente.



Versos para te ungirem os ouvidos

E os labios d’anemica e de santa,

Tão pobres, tão ingenuos, tão sentidos,

Que o povo humilde os acolheu e os canta.



Então, se te olhar bem, logo adivinha…

Logo sombriamente se convence

De que a tua alma se fundiu na minha

–E apenas o teu corpo lhe pertence.



in" Luar de Janeiro"